​​​Isto é política digital

NERV (português)
11 min readFeb 28, 2022

A política é complexa e sua digitalização é um longo processo que vem ocorrendo de uma forma ou de outra desde a concepção dos computadores, antes mesmo do surgimento da World Wide Web.[1][2] Esta evolução vai desde o uso de tecnologias modernas de comunicação em tempo real através da internet por instituições públicas[3] até à partilha de publicações em sites como os portais de cidades. 79% destes portais estão ligados aos media sociais como o Facebook, Twitter, YouTube e Flickr. No continente asiático a Coreia do Sul em Gyeonggi-do referendou on-line com sucesso cerca de 9000 participantes que decidiram os destinos de 527 projetos comunitários.[4] A mudança mais impactante na política em consequência de sua digitalização no entanto, seja em que medida for, é a mudança do discurso político dos canais oficiais para as redes sociais. Todos os protestos em massa recentes foram, ou melhor ainda são, organizados on-line e inspirados em #hashtags![5] Mas deixaremos a discussão do enorme impacto das redes sociais na política para outro momento. Por agora tomemos nota de que em muitos lugares do mundo as sessões plenárias são agora gravadas e transmitidas ao vivo no YouTube, como o são as reuniões da câmara municipal da cidade de Almada em Portugal na Europa.[6] De acordo com o Relatório e-Parlamento Mundial 2020 publicado pela União Interparlamentar[7], mais de três quartos dos parlamentos neste momento usam gravação automática de vídeo em suas salas plenárias para capturar e transmitir os procedimentos pela internet:

Sessões remotas no parlamento argentino usando comunicações em tempo real pela internet. Zoom (45%), um software proprietário e de código fechado é a ferramenta de comunicação mais utilizada em parlamentos

Em alguns parlamentos híbridos remotos/presenciais, esteve disponível a votação em mobilidade de forma segura. Embora ainda pequeno em número, a votação em mobilidade teve um aumento significativo de 6x em seu uso nos últimos tempos. Esta é talvez a característica mais desafiadora quando se quer desenvolver a política digital. A votação é o que impulsiona o consenso e deve ser absolutamente cibersegura e à prova de fraude. Espanha, Brasil e Reino Unido, seguidos pelos parlamentos da Argentina, Chile, Letônia e Zâmbia, desenvolveram aplicativos de votação personalizados para uso parlamentar. O Parlamento da Letônia, em particular, desenvolveu um sistema plenário totalmente virtual, permitindo que seus membros trabalhem totalmente remotamente. Os programadores encarregados de desenvolver o software criaram uma solução exclusiva para integrar a gestão de documentos, votações e reuniões virtuais usando a plataforma de código aberto Jitsi[8]. Para garantir a segurança cibernética e a autenticidade dos utilizadores foram utilizados cartões de identidade nacionais.[9] Um exemplo interessante do potencial da digitalização da política pode ser visto em um projeto agora obsoleto feito por dois cidadãos portugueses. O projeto recebeu o nome de Hemiciclo:

Captura de tela do site obsoleto www.hemiciclo.pt

No Hemiciclo podia ver-se quase em tempo real, com dados provenientes de sites oficiais (com scrapers e feeds RSS), o que se passava na Assembleia da República. Na plataforma eram apresentados os diplomas em discussão, quem votou a favor ou contra, acompanhado de um simples infográfico que auxiliava a visualização do processo de votação. Poder-se-ia acompanhar cada deputado individualmente, e com o tempo foram sendo acrescentados módulos adicionais, como estatísticas de votação ou mudanças de assentos, para citar alguns módulos:

Mudança de assento conforme informado pela plataforma Hemiciclo

Infelizmente, estudos[10] parecem sugerir que embora haja progresso na digitalização dos parlamentos, este tem sido lento pois não há uma forte vontade política para o fazer, especialmente no que diz respeito à interação com os cidadãos. Apenas 1 em cada 5 parlamentos possuem procedimentos formais para avaliar melhorias na sua digitalização! Mais, apenas 59% dos parlamentos relatam ter uma visão e direção estratégica para tal, o que representa um declínio de 63% em 2018 e de 73% nas estatísticas de 2016 referentes a este ponto. Um declínio difícil de justificar.

Mais uma vez, o processo pelo qual podemos tornar a política mais digital é complexo; já existem vários serviços governamentais disponíveis on-line em praticamente todo o mundo; o mais comum é a possibilidade de solicitar licenças comerciais, certidões de nascimento e de óbito e fazer o pagamento de serviços públicos. O pedido de mudança de morada residencial on-line é o serviço menos comum com apenas 66 países oferecendo essa possibilidade.[11] Chegados a este momento na discussão, uma distinção clara é necessário ser feita entre governação e política digital. Governação esta relacionada com a digitalização dos serviços prestados pelo estado dos quais acabámos de citar alguns, enquanto que política tem mais a ver com a geração de consenso em si em torno de um determinado projeto ou objetivo político. Quando este consenso é criado por meio de canais oficiais, os estudiosos o definem como e-participação. Um dos muitos exemplos desta prática é o Desafio Orçamental da California.[12]

Em última análise, o que nos devemos perguntar é o seguinte: quantas vezes fomos chamados por instituições públicas para responder a questões relevantes sobre nossa vida social? Uma vez a cada 4 anos talvez se considerarmos que em muitos sistemas políticos a figura do presidente é irrelevante em relação ao papel dos deputados e dos parlamentares. Assumindo uma idade mínima do eleitor de 18 anos e uma expectativa de vida de 80 anos, isto significa que com o nosso sistema político atual, em média, você terá a oportunidade de se expressar diretamente 15 vezes ao longo de toda a sua vida, para tratar de assuntos complexos tais como questões orçamentárias como quais as corporações que devem receber recursos públicos (os países desenvolvidos ainda deveriam financiar o carvão?), os cuidados de saúde (você concorda que a pesquisa de ganho de função seja legal? e as vacinas obrigatórias?), empreendimentos militares, a educação de seus filhos, normas sociais, como resolver problemas ambientais (por que não estamos construindo um sistema ferroviário transcontinental conectando todas as principais polis urbanas em todos os continentes?), planeamento urbano, política de migração, controle fronteiriço, quais os assuntos que a ciência deveria investigar, devemos construir um base em Marte? Os 1% mais ricos deveriam contribuir mais para o bem estar da sociedade, ou não? 15 vezes… Você será questionado para responder a uma infinidade de perguntas, a maioria das quais consequentes na nossa vida quotidiana.

Assumindo uma idade mínima do eleitor de 18 anos e uma expectativa de vida de 80 anos, isto significa que com o nosso sistema político atual, em média, você terá a oportunidade de se expressar diretamente 15 vezes ao longo de toda a sua vida

Para mitigar esta falha óbvia nas democracias modernas diferentes abordagens estão sendo adotadas em muitos países e cidades. O orçamento participativo on-line e o planeamento participativo do uso da terra são dois dos principais tipos de iniciativas usadas pelas cidades/municípios para que se envolvam as comunidades locais. Poucos, mas alguns (17%) portais da cidade oferecem ferramentas ou sistemas de participação on-line por forma a facilitar o envolvimento das pessoas na tomada de decisões nos respetivos governos locais. Existem plataformas interessantes desenvolvidas especificamente para a participação on-line, como é exemplo uma plataforma encontrada na Venezuela na América do Sul. Lá, o governo fundou uma plataforma denominada Sinco[13] onde qualquer cidadão pode publicar e votar em propostas de políticas on-line remotamente. Uma parte importante do orçamento nacional é destinada aos projetos que são considerados consensuais. A plataforma é baseada no Google Maps, onde as políticas são identificadas numa geolocalização. A plataforma ainda está em execução ao momento:

Sinco UI

Ainda, Bogotá te escucha[14] (Bogotá te escuta) é uma ferramenta digital e on-line que pessoas podem usar para enviar reclamações, sugestões, pedir consultas, expressar preocupações sobre possíveis actos de corrupção ou quaisquer outras solicitações relacionadas a questões que afetem os interesses da comunidade. O sistema oferece um serviço de registro, mas também permite que as pessoas enviem solicitações anônimas assim como verificarem o estado dos seus pedidos. Todos estes pedidos são dirigidos às autoridades competentes. FixMyStreet[15] é um outro bom exemplo da interseção entre ferramentas digitais e a política, mas criado não por instituições públicas e apresentado em portais da cidade, mas é antes sim um empreendimento de código aberto criado pelos próprios cidadãos. Em Hamburgo, Alemanha, a iniciativa Finding Places[16] também é um caso interessante de se mencionar. Ferramentas digitais foram implantadas por forma a ajudar o alojamento de refugiados. Em vez de colocar essa tarefa nas mãos de burocratas, a plataforma fez um apelo à participação cívica para discutir o assunto on-line. Envolveu aproximadamente 400 participantes que identificaram 160 localidades, das quais 44 foram aceites pelas autoridades locais.

Tais mecanismos são encontrados na maioria dos países europeus; há evidências de consultas eletrônicas on-line no passado recente em mais da metade da região. Os mecanismos de consulta on-line são muito mais raros na África, embora também existam. De quaisquer formas a tendência é clara: a “oferta” de consultas oficiais eletrônicas on-line pelos governos tem vindo a aumentar continuamente. O que não é muito claro é o porquê desta multiplicação de plataformas não se traduzir num envolvimento mais amplo e profundo por parte das populações. Na maioria dos casos, esta participação permanece baixa. A relutância das instituições públicas em compartilhar a criação e definição da sua agenda e os seus procedimentos na tomada de decisões desde a consulta on-line até à implementação concreta das políticas parece desempenhar um papel importante na limitação deste progresso, entre outros fatores, tais como a percepção de falta de segurança cibernética, que se justifica até certo ponto se considerarmos que a maioria dos sites governamentais não respeitam todos os critérios de cibersegurança. Em particular, apenas uma parte minúscula impede uma ampla gama de ataques de cross-site scripting e clickjacking (política de segurança de conteúdo) e apenas 3% podem impedir que terceiros leiam ou alterem o conteúdo enviado entre um usuário e o site usando uma conexão segura por HTTPS. Da mesma forma, apenas 1% dos portais de e-mail governamentais são ciberseguros! Uma situação recente e muito prejudicial aconteceu na Argentina, onde vazou a informação de identidade de toda a população do país[17]:

Dados dos jogadores de futebol Messi e Sergio Aguero vazaram no Twitter

O que mais interessa, portanto, é o que diz respeito à cibersegurança[18] na votação em mobilidade[19]. Isto é considerado o santo graal da política digital. O exemplo mais famoso da sua utilização na política é a situação na Estónia[20] onde desde 2005 têm sido realizadas eleições com a opção de votação em mobilidade ou de forma presencial. Até hoje, ninguém conseguiu provar que houve fraude ou um ataque bem-sucedido ao sistema![21] Consequentemente, há políticos no Parlamento Europeu neste exato momento que foram eleitos por pessoas que votaram remotamente em suas casas. Outro exemplo não tão conhecido, mas bastante interessante, da aplicação do voto eletrônico à distância na política foi quando um tratado de paz entre o governo colombiano e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) foi referendado.[22] O Registo Civil Nacional da Colômbia tomou conta antes do referendo que dos 6 milhões de colombianos que vivem no exterior, apenas 600 000 poderiam votar efetivamente na embaixada do seu país de residência. Para tornar menos grave a exclusão de uma parte tão importante da população, em cooperação com a organização sem fins lucrativos Fundação Democrática Terrestre, Plebiscito Digital, uma plataforma de votação on-line apoiada por blockchain foi efetivamente configurada. Desta forma, expatriados colombianos que de outra forma não poderiam participar tiveram a chance de o fazer decidindo assim a aprovação ou não de um tratado de paz.

A votação pela Internet na Estônia é baseada em cartões inteligentes emitidos pelo estado que fornecem a identidade digital

Pode-se perguntar que tipos de sistemas democráticos alternativos surgirão da evolução da digitalização da política. Não será necessariamente o caso em que cada pessoa terá que votar e decidir sobre todos e cada um dos assuntos.[23] Na verdade uma vez que se tenha um sistema de votação on-line ciberseguro e em escala, uma nova maneira de fazer política que faça uso dos aspectos positivos da democracia representativa e direta surgirá. Os estudiosos chamam isso de democracia líquida.[24] Na democracia líquida, os cidadãos podem votar diretamente num diploma específico ou, alternativamente, podem delegar o seu voto a um eleitor por procuração on-line. Com o auxílio de ferramentas digitais devidamente configuradas, ambos os processos podem ocorrer de forma transparente e segura.

Concluindo, embora haja uma correlação positiva entre a evolução da governação eletrônica em todo o mundo e o nível de riqueza, em razão do progresso ter sido relativamente lento devemos concluir que os recursos financeiros não são o único fator. Talvez mais do que isso, a vontade política e a liderança estratégica o sejam.

Referências

[1] Project Cybersyn entry on Wikipedia, https://en.wikipedia.org/wiki/Project_Cybersyn

[2] “How the CIA Destroyed the Socialist Internet: Cybersyn” entry on Youtube, https://youtu.be/ACfgc1o3P6o

[3] “Germany’s national healthcare system adopts Matrix!” article by Matthew Hodgson from Matrix, https://matrix.org/blog/2021/07/21/germanys-national-healthcare-system-adopts-matrix

[4] “A South Korean Province Used Blockchain Tech for Resident Voting” by Samburaj Das, CNN, 2017, http://www.ccn.com/south-korean-province-used-blockchain-tech-resident-voting/

[5] “Digital democracy: Is the future of civic engagement online?” by Gianluca Sgueo, European Parliamentary Research Service, 2020, https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/BRIE/2020/646161/EPRS_BRI(2020)646161_EN.pdf

[6] Local government meeting sessions on-line on Youtube, Municipality of Almada, Portugal, https://www.youtube.com/watch?v=pZ_mWmiWZac&list=PLOhpLyW8YPFabhFTQ00OIyt0etJoWrEBD

[7] “World e-Parliament Report 2020” issued by the Inter-Parliamentary Union, Andy Williamson et al., Inter-Parliamentary Union Centre for Innovation in Parliament, 2021, https://www.agora-parl.org/sites/default/files/agora-documents/World%20e-Parliament%20Report%202020%2C%20issued%202021.pdf

[8] Jitsi, https://jitsi.org/

[9] Latvia’s eID smart-card, https://www.pmlp.gov.lv/en/identity-card-eid

[10] “Parliamentary online public engagement in the 21st Century: A comparative perspective with a focus on Austria and Portugal” by Sofia Raquel Serra-Silva, Universidade de Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, Lisboa, 2020, https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/45279/1/ULSD638268_td_Sofia_Silva.pdf

[11] “E-Government Survey 2020: Digital Government in the Decade of Action for Sustainable Development” by the United Nations Department of Economical and Social Affairs, 2020, https://publicadministration.un.org/egovkb/Portals/egovkb/Documents/un/2020-Survey/2020%20UN%20E-Government%20Survey%20(Full%20Report).pdf

[12] California Budget Challenge, https://www.budgetchallenge.org/pages/home

[13] “SINCO, el proyecto digital que interconecta al poder popular en Venezuela” on Sputnik News, http://mundo.sputniknews.com/20210415/sinco-el-proyecto-digital-que-interconecta-al-poder-popular-en-venezuela-1111206467.html

[14] “Bogotá te escucha, Sistema Distrital para la Gestión de Peticiones Ciudadanas”, https://bogota.gov.co/sdqs/

[15] FixMyStreet, http://www.fixmystreet.com/

[16] Finding Places, https://use.metropolis.org/case-studies/finding-places#casestudydetail

[17] “Argentina’s national population ID information was stolen by hackers and is being sold” entry on Real Mi Central, 2021, https://www.realmicentral.com/2021/10/19/argentinas-national-population-id-information-was-stolen-by-hackers-and-is-being-sold/

[18] “What is cybersecurity?” entry on IBM webite, https://www.ibm.com/topics/cybersecurity

[19] “Electronic voting by country” entry on Wikipedia, https://en.wikipedia.org/wiki/Electronic_voting_by_country

[20] “How Estonia’s E-Voting System Could Be The Future” by Kalev Leetaru on Forbes, 2018, https://www.forbes.com/sites/kalevleetaru/2017/06/07/how-estonias-e-voting-system-could-be-the-future/

[21] “I-voting: What can the U.S. learn from Estonia’s online elections?” by Daniel Harries, China Global Television Network, 2020, http://newseu.cgtn.com/news/2020-11-07/I-voting-What-can-the-U-S-learn-from-Estonia-s-online-elections--VcTflh3pdu/index.html

[22] “How Blockchain can change voting: the Colombian Peace plebiscite” by Charlotte van Ooijen on The Forum Network, Organisation for Economic Co-operation and Development, 2017, https://www.oecd-forum.org/posts/28703-how-blockchain-can-change-voting-the-colombian-peace-plebiscite

[23] “Delegative Democracy” by Bryan Ford, 2002, https://bford.info/deleg/deleg.pdf

[24] “Liquid Democracy: True Democracy for the 21st Century” on Medium by Dominik Schiener, 2015, https://medium.com/organizer-sandbox/liquid-democracy-true-democracy-for-the-21st-century-7c66f5e53b6f

Anexo

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