Parem de atirar moedas uns para cima dos outros!
Aviso de reivindicação inflamatória: O único mecanismo que pode impedir que uma baleia[1] influencie o resultado das decisões de votação em DAOs que nao possuam mecanismos de gestão de identidade[2] fortes são poderes similares aos de veto atribuídos a um subconjunto dos detentores de tokens, geralmente os fundadores do projeto em coordenação com outras partes interessadas importantes.
Esses poderes podem ser codificados em certa medida nos contratos inteligentes que formam a base para a interação dos membros da comunidade. A necessidade destas restrições é porque, na maioria das implementações atuais, os tokens de governança são comprados com dinheiro: FIAT ou criptomoeda, como você quiser, e quanto mais dinheiro você tiver, mais tokens poderá comprar, o que significa que o poder de voto é proporcional ao investimento feito. Indiscutivelmente antidemocrático.
Como consequência, o D de descentralizada na palavra DAO efetivamente se torna um C de centralização ou um S de semi-descentralização, dependendo da implementação específica, em clara contradição com o etos da Web3. Este aspecto da governação das DAOs, ou falta de governanção adequada, é muitas vezes esquecido, e a razão pela qual acontece que em muitos mais projetos do que o desejado, de repente, os fundadores e o tesouro simplesmente desaparecem.
Esta poderia ser uma das razões por trás do fracasso de tantas criptomoedas recentemente. O senhor Vitalik Buterin parece concordar com esta afirmação.[3] Esta falta de governança adequada não está ajudando os entusiastas de criptomoedas a atrair novos usuários para o espaço… Neste sentido, a maioria das ICOs não passam de vendas através de financiamento coletivo suportadas em blockchain, longe de serem verdadeiras Organizações Autônomas Descentralizadas.[4] Ainda assim, em geral, o que temos agora é uma melhoria em relação à maioria das plataformas de crowdfunding em certos aspectos… Mas e o que significa realmente o fato de que menos de 1% de todos os detentores de tokens possuirem 90% do poder de voto, conforme relatado pela Chainalysis[5], [6], e quais implicações isto tem no crescimento e no potencial da cripto em geral?
Um artigo do grupo de pesquisa de blockchain Smith + Crown explora alguns detalhes sobre os fundamentos do problema que estamos discutindo.[7]
Os fundadores estão sempre numa posição privilegiada
Ao lançar qualquer tipo de projeto seja ele cripto ou não, os seus fundadores beneficiam da posse de informações por relação aos novos clientes e utilizadores recém-chegados em consequência de reuniões privadas realizadas com outras partes interessadas, pesquisas de mercado anteriores que possam ter sido feitas, desenvolvimento do produto em si, etc., um problema que é tipificado na economia tradicional como uso de informações privilegiadas vulgo insider trading.[8] Em criptoeconomia isto inevitavelmente favorece os criadores de igual forma, tosse Sakamoto[9] tosse; mas não é percecionado como sendo algo necessariamente mau. O que é verdadeiramente fundamental para o cumprimento do etos da Web3 no mundo das DAOs é que, pelo menos, com o passar do tempo e o amadurecimento da comunidade, hajam mecanismos de verificação e garantias de que esta influência tenda a diminuir, sempre que possivel codificando na forma de regras e acordos autoexecutáveis em contratos inteligentes.
Esta é a razão pela qual para que qualquer DAO possa devidamente ser chamada assim, a sua estratégia de governanção e principais atores devem ser apresentados e tornados públicos de uma forma muito clara desde o início. Se você está olhando para um projeto que não tem uma estratégia clara de governanção e está tendo dificuldades em entender quem são os fundadores, como eles se envolvem com a comunidade e como planeiam diminuir a dependência da DAO da sua influência, desculpe, mas os tokens do projeto que você está pensando em comprar são, muito provavelmente, shitcoins[10].
Um exemplo de boas práticas de governanção é o que acontece com a blockchain Algorand que sugerimos ao leitor que se familiarize.[11] Não possui mecanismos de gestão de identidade fortes, mas, neste caso, esta lacuna representa um risco menor porque as comunidades blockchain geralmente são muito maiores do que as DAOs e, portanto, mais difíceis de atacar. Uma alternativa à gestão de identidades que tanto temos mencionado é o uso de métricas de reputação para avaliar o nível de confiança entre os membros de uma comunidade. Essa é a abordagem da Edgeware DAO.[12]
Governanção em DAOs é o bloco de construção fundamental
Vamos imaginar um cenário em que os fundadores de um projeto não tenham nenhum poder de veto para começar. Qualquer pessoa pode ingressar na DAO e participar na sua governanção com iguais direitos, como qualquer DAO deve ser. Agora, digamos que o poder de voto seja proporcional ao número de fichas aka tokens aka acções, que possua e não à regra 1 pessoa-1 voto. Mais, estas fichas ou acções podem ser compradas com dinheiro de forma indiscriminada. É assim que funcionam a maioria das DAOs actualmente.
A questão que se levanta então é o que é que impede efectivamente uma baleia de comprar a maioria dos tokens e assumir o controle absoluto sobre as decisões tomadas na DAO? Pior ainda, porque não há gestão de identidades ou um mecanismo de reputação credível, como poderia tal manobra ser detectada?
Para grandes projetos, como blockchains como o Ethereum, a falta de identidade digital não é um problema em si porque o valor de mercado[13] de eth é avaliado em US $ 195.880.240.009, o que está fora do alcance mesmo para a maioria dos bilionários mais ricos conhecidos no mundo. No entanto representa apenas 14,87% das reservas cambiais do Japão[14], o que ainda pode ser interpretado como uma ameaça à rede do ponto de vista teórico (nada contra nipónicos atenção trata-se meramente de um exercício mental). Claro, aqui estou a considerar qualquer detentor de eth como membro de uma DAO que não existe oficialmente mas que pode ser considerada por definição.
Um ataque de uma instituição como um país poderoso é um cenário improvável que em geral não vale o risco pois o ataque pode ser mitigado com um hard fork[15] uma vez detectado. Também podem ser consideradas outras tecnicalidades tais como processos específico aos algoritmos de consenso na blockchain que oferecem um pouco de proteção extra não presente nos mecanismos de votação em DAOs mas que não adianta detalhar agora. Um exemplo muito recente entre vários que poderiamos apontar relativos a estas questões foi uma baleia saiu de um protocolo DeFi em Solana quando foi ameaçada de captura num debate acalorado entre membros da comunidade.[16]
A compra de tokens em geral é uma coisa interessante de se fazer, como aquelas que fornecem algum valor econômico, acesso a um serviço ou comprovam a propriedade de um ativo, como o que acontece com as NFTs. Mas o caso que estamos tentando estabelecer aqui é que não são poderosas o suficiente para as necessidades de governança da maioria das DAOs, pelo menos na sua implementação actual.
Significa então que a votação baseada em tokens é uma abordagem completamente errada e inútil?
Fora do próprio domínio da infraestrutura blockchain em si, se olharmos apenas para o aspecto DAO em particular, no estado atual das coisas, a resposta é que a votação baseada em tokens não fornece um mecanismo seguro e claro para a tomada de decisões, a menos que os votantes estejam prontos a reconhecer que aquilo em que estão a participar não é realmente descentralizado pelas razões a que aludimos. Em um mercado regulado, as coisas podem ser diferentes. Neste caso votar com dinheiro pode na verdade ser a melhor abordagem em certas áreas da economia. Regulamentação não precisa necessariamente significar centralização, desde que as regras pelas quais certas operações financeiras ocorram, operações cripto financeiras neste caso, sejam previamente acordadas por entre todos os hipotéticos possuidores de tokens governativas. A vantagem da existência deste regulamento por exemplo seria o de promover mecanismos justos de resolução de conflitos.
A solução imediata e a saída mais fácil para os problemas que compartilhamos aqui seria trazer a identidade digital para a Web3 ou regular o mercado de criptomoedas. Pouca menção foi dada às DAOs na última tentativa dos legisladores da UE em regular o espaço.[17] Tanto quanto sabemos, a tentativa mais abrangente e séria de regulamentação foi proposta pelo grupo de trabalho COALA, que sugerimos bastante que se familiarize se você for um desenvolvedor.[18]
Passar de um ambiente Web3 completamente anônimo para um ambiente de pseudônimia que mesmo assim preserve a privacidade, é a única maneira de podermos estabelecer a regra 1 pessoa-1-voto através da internet tão fundamental para que as DAOs possam efectivamente existir.
Talvez seja útil pensar que nem todas as ideias em sistemas antigos são ruins e obsoletas! Assim como as leis da gravidade propostas pelo génio Isaac Newton ainda são ensinadas para fins educacionais e práticos pese embora as equações relativísticas sejam melhores para descrever a realidade física, talvez a gestão de identidades e a regulamentação em ciências econômicas e computacionais tradicionais sejam aspectos importantes que ainda devam ser levados em consideração na nova fronteira da Web3.
O objetivo final é portanto fazer uso adequado da identidade digital e da criptografia simultaneamente, tópicos cujos detalhes mais relevantes investigaremos em artigos separados nos próximos meses.
Referências:
[1] “Whales: O que são Baleias no Mercado de Criptomoedas?”, artigo publicado no blog da Binance, 2021. https://www.binance.com/pt-BR/blog/all/whales-o-que-s%C3%A3o-baleias-no-mercado-de-criptomoedas-421499824684902660
[2] Gestão de identidades, entrada na Wikipedia, https://pt.wikipedia.org/wiki/Gest%C3%A3o_de_identidades
[3] “Governance is more than token voting” por Vitalik Buterin, repost do blog do autor na CoinYuppie, 2021. https://coinyuppie.com/vitalik-governance-is-more-than-token-voting/
[4] Organização autônoma descentralizada, entrada na Wikipedia, https://pt.wikipedia.org/wiki/Organiza%C3%A7%C3%A3o_aut%C3%B4noma_descentralizada
[5] “Dissecting the DAO: Web3 Ownership is Surprisingly Concentrated” pela Chainalysis, 2022. https://blog.chainalysis.com/reports/web3-daos-2022/
[6] “1% of DAO Members Controlling 90% Voting Power: Chainalysis” por Jay Zhuang, CryptoPotato, 2022. https://cryptopotato.com/1-of-dao-members-controlling-90-voting-power-chainalysis/
[7] “Distributed Governance: Beyond Token-based Voting” por Smith + Crown, 2019. https://smithandcrown.com/research/distributed-governance-beyond-token-based-voting/
[8] Insider trading, entrada na Wikipedia, https://pt.wikipedia.org/wiki/Insider_trading
[9] “Who Is Satoshi Nakamoto?” por Adam Hayes published na Investopedia, 2022. https://www.investopedia.com/terms/s/satoshi-nakamoto.asp
[10] “O que é um Shitcoin?”, artigo publicado pela Bit2Me, https://academy.bit2me.com/pt/que-es-una-shitcoin/
[11] “Decentralizing Algorand Governance” on Algorand’s portal, 2021, https://algorand.foundation/governance/proposal
[12] Edgeware DAO, https://edgewa.re/
[13] Ethereum preço e valor de mercado na CoinMarketCap, https://coinmarketcap.com/pt-br/currencies/ethereum/
[14] List of countries by foreign-exchange reserves, entrada na Wikipedia, https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_countries_by_foreign-exchange_reserves
[15] “O que é Hard Fork?”, artigo publicado pela Cointelegraph BR, https://cointelegraph.com.br/bitcoin-cash-for-beginners/what-is-hard-fork
[16] “Solend Whale Moves $25M to Another Platform Despite Canceled Plans to Seize Their Wallet” por Jay Zhuang, CryptoPotato, 2022. https://cryptopotato.com/solend-whale-moves-25m-to-another-platform-despite-canceled-plans-to-seize-their-wallet/
[17] “An Overview of MiCA: Markets in Crypto Assets Regulation” publicado pela LimeLegal, 2021. https://lime.legal/an-overview-of-mica-markets-in-crypto-assets-regulation/
[18] “Model Law for Decentralized Autonomous Organizations (DAOs)”, Coalition of Automated Legal Applications, 2021. https://coala.global/, https://www.lextechinstitute.ch/wp-content/uploads/2021/06/DAO-Model-Law.pdf